Entre olhar e escrever, os Girassóis

ART ESSAYS

Betina Juglair

5/9/20237 min read

A professora de artes já estava nos seus cinquenta e tantos anos, há pelo menos vinte sem paciência para estar ali. Ela usava umas roupas que ao mesmo tempo eram de senhora (conjuntinhos de calças e camisas soltas, com tecidos leves, sandálias), mas também com uma certa presença, um je ne sais quoi, sempre com padronagens grandes.


Seus cabelos curtíssimos eram avermelhados, num tom bordô e num corte que eu fui ter dez anos depois. Seus óculos de grau também eram vermelhos, meio de gatinho, ou com algum aspecto minimamente extravagante — mas tudo que foge do ordinário parece extravagante numa escola católica em uma cidade pequena no interior do Paraná, estado esquecido do sul do Brasil. Eu ainda me sinto meio jeca, meio inadequada, meio bicho do mato (e lá nem tem mato, é só agro), mas fazendo as contas eu passei mais tempo lá do que fora. Pato Branco jamais sairá de mim, essa é a verdade.


Eu gostava das aulas de artes, e às quartas-feiras às 7 da manhã, de propósito, eu escolhia a primeira carteira da fila do meio, que era para estar bem ali. Neste dia, ela colocou em frente da classe um daqueles grandes livros de história da arte, pesados, grossos, aberto numa página com uma pintura de flores amarelas. Ela mostrou para toda a turma, falou brevemente sobre Van Gogh, sua genialidade e história trágica, pediu que escrevêssemos algo sobre aquela pintura, pegou um livro, sentou numa cadeira e ali ficou lendo até o fim da aula, indiferente.


Era uma tarefa muito simples, e como toda aula de artes, a turma dispersou, virou baderna, virou outra coisa (que é mesmo como tem que ser). Mas eu fiquei ali, na minha cadeira, olhando e imaginando coisas, presa na complexidade desse ato tão simples quanto olhar e escrever.


Entre olhar e escrever há tantas possibilidades: olhar, imaginar e escrever; olhar, pensar e escrever; olhar, sentir e escrever; olhar, pesquisar e escrever; olhar, olhar outra coisa e escrever; olhar, ver e escrever; olhar, escrever e escrever… Tudo o que há entre o olho e a mão é trabalho: do corpo, da mente, do estômago, da pele, da memória; há tantos universos possíveis entre aqueles girassóis, o meu olhar e a minha escrita.

Tudo o que há entre o olho e a mão é trabalho: do corpo, da mente, do estômago, da pele, da memória; há tantos universos possíveis entre aqueles girassóis, o meu olhar e a minha escrita.

Isso tudo eu não pensei na hora, mas hoje eu sempre penso. Não faz muito tempo criei o hábito de levar um caderno nas exposições que vou — quando vejo, quando vejo verdadeiramente, quando vejo e sinto, há sempre algo da ordem da urgência que deve ser imediatamente traduzido em palavra.


Naquele dia, entre meu olhar e minha escrita, o que havia eram as informações da professora, a lembrança do pouco que sabia de Van Gogh, mas também minha imaginação e minha atenção que empreguei naqueles Girassóis: nas pinceladas, nas cores, na sua beleza.

Desenvolvi um pequeno texto, uns 3 parágrafos. Fiz toda uma teoria de que os girassóis eram na verdade uma representação da clausura mental de Van Gogh, já tomado pela loucura — todos os 7 quadros de girassóis, sua pequena obsessão, foram feitos entre 1888 e 1889, coincidindo com a época da amputação da sua orelha. Do modo que eu via, do alto dos meus 14 anos, Van Gogh pintou a vivacidade das flores limitadas pelo vaso, fadadas à clausura e ao desaparecimento, como uma metáfora do momento de sua própria vida, fechado em casas e hospitais psiquiátricos (sua morte se deu pouco tempo e alguns quadros depois).

Os girassóis contidos no vaso contrastam com outras pinturas suas de campos abertos e amplos, no conteúdo e na forma (pensando na horizontalidade da paisagem e na verticalidade do vaso). É verdade que também há paisagens de Van Gogh totalmente desoladoras, e talvez a própria abertura radical de alguns temas torne a paisagem ainda mais ameaçadora, como se vê em Wheatfield with Crows, seu último quadro (que não consigo evitar de me perguntar se é uma anunciação do que aconteceria).

Campo de Trigo com Corvos
Van Gogh, 1890
Van Gogh Museum, Amsterdã

Antes do escrever, é preciso poder olhar: e assim, hoje penso também em Walter Benjamin, que entendeu a conexão entre um pintor neerlandês do século XIX com uma menina brasileira numa pequena escola católica 120 anos depois. Afinal, uma das consequências da possibilidade de reproduzir imagens é precisamente alargar as possibilidades do olhar, tornar as imagens acessíveis, horizontalizar a criação e a recepção de imagens - e assim fazê-las viajar por anos e caminhos inimagináveis.


Volto a essa aula de artes, volto a essa fotografia dos Girassóis cravada na parede da memória, volto no tempo e no espaço porque eu vi os Girassóis. E tive essa experiência tão íntima, tão minha, num dia de eventos tão externos e imponentes, tão fora de mim — um eclipse lunar no meu signo, a véspera da coroação de um rei de um país que enriqueceu também às custas do meu. Nada disso importa, tudo isso importa.

Busquei avidamente pelos Girassóis nos inúmeros corredores da National Gallery, entre inúmeras salas com retratos mais ou menos inúteis de aristocratas e burgueses europeus. Não me importavam — nem tudo em arte comove, boa parte é ego e gastação de tinta. Eu buscava os Girassóis.

E então, com os Girassóis à minha frente, sem mediação por livro, reprodução ou professora nenhuma, entre meu olhar e minha escrita se impôs a lágrima. Em frente a eles, tão bonitos, tão imponentes, fui transportada para o outro lado do oceano, para 15 anos antes, para a professora de cabelos bordô, para a primeira fileira da sala de aula, para a ingenuidade da cabeça e dos olhos de uma pré-adolescente.


Ainda hoje, em tudo o que eu faço, busco um frescor infantil de mundo novo, um modo ingênuo de perceber e transmitir as coisas, um fazer simples e cheio de vida. É bonito demais ser tomada de surpresa por essa sensação — e arte, para mim, é isso, é esse arrastar inevitável do corpo em direção a outra coisa, seja o desconhecido ou o seu completo oposto, aquilo que levamos tão próximo e tão íntimo que só algo de fora nos consegue arrancar.


O meu textinho de escola rascunhava uma relação melancólica entre os lindos e vistosos girassóis presos ao vaso com o próprio destino do artista, que nos últimos anos de sua vida passou por vários problemas de saúde mental sem nunca parar de pintar. Por sua vez, o texto técnico da National Gallery enaltecia o simbolismo de amizade e gratidão dos Girassóis, tanto pela cor amarela quanto pelo facto de que este quadro foi pintado por Van Gogh para adornar o quarto do amigo Gauguin em sua visita em Arles.

A longa espera de um amigo, sua recepção por girassóis em bonitas pinceladas de tantos amarelos e verde, miolos de sementes fartas, promessas de vida e continuidade; nessa perspectiva, Os Girassóis teriam representado alegria, vivacidade - não aquela limitadora do vaso que eu descrevia, mas uma alegria genuína de um reencontro aguardado.

No fundo, só o que há é aquilo que se apresenta, aquilo que olhamos, aquilo que a obra causa em nós.
O que há são dez ou doze girassóis num vaso, ou então infinitos deles em campo aberto, ou sua fotografia em um livro grande e pesado, o que há são artistas e flores mais ou menos vivos, mais ou menos mortos, mais ou menos amarelos.

E então? O que são os Girassóis, o que nos dizem? Um retrato de um artista depressivo e à beira da loucura, metáfora de si represado por um vaso? Ou precisamente a felicidade simples de flores à espera de um amigo, a tentativa de capturar, guardar, partilhar com quem gostamos aquilo que é efêmero?


Para mim, os Girassóis me dizem tudo isso e ainda me levam ao interior do Paraná, à minha pré-adolescência. A verdade é que a real intencionalidade da pessoa artista é impossível de acessar — ainda que a artista diga alguma coisa, ainda que não diga nada; no fundo, não importa o que diz, ao mesmo tempo que o que diz e como diz é de suma importância. Não importa sua vida, sua morte, pro raio que o parta sua orelha esquerda, a briga com Gauguin. E ao mesmo tempo… tudo isso importa, sim. Vida, artista e obra são eternamente, completamente embaralhadas. O amarelo é amizade e é angústia, a flor vive num vaso morto, o vaso vive no quadro, os girassóis morrem mas revivem por Van Gogh, por Gauguin, por milhares de pessoas todos os dias a vê-los ao vivo ou por fotografias.


No fundo, só o que há é aquilo que se apresenta, aquilo que olhamos, aquilo que a obra causa em nós. O que há são dez ou doze girassóis num vaso, ou então infinitos deles em campo aberto, ou sua fotografia em um livro grande e pesado, o que há são artistas e flores mais ou menos vivos, mais ou menos mortos, mais ou menos amarelos. No quadro que vemos há apenas a amizade e a dor que sentimos, a memória que aquilo nos evoca, ou então sua completa indiferença — porque uma pintura pode não nos dizer nada, como nada disse aos meus colegas de sala. A arte não é uma experiência universal, e não deveria ser.

Meu texto de 15 anos atrás, muito mais simples que esse, sequer deve ter sido lido pela professora. Acho que ela já morreu, também. A amizade, a dor, a loucura, também já são outra coisa — meu olhar e minha escrita também.