Entrevista fictícia sobre experiência estética - Pequeno Museu de Banalidades

ART ESSAYS

Betina Juglair

10/25/202210 min read

Entrevista fictícia sobre experiência estética - Pequeno Museu de Banalidades


De clínicas de estética o mundo está cheio, não há nada de novo nisso. As pessoas marcam hora, entram e colocam seu corpo à disposição de inúmeros tratamentos, desde os tradicionais serviços de cabeleireiro, manicure e pedicure, passando por massagens relaxantes e modeladoras até as intervenções mais recentes que prometem clareamento da pele, eliminação de rugas e da flacidez com métodos que usam o melhor da tecnologia e da ciência. O corpo é colocado em evidência na busca pela autossatisfação, valorização da autoestima, bem-estar e qualidade de vida. O que então uma clínica de estética poderia oferecer de tão diferente? É o que vamos saber depois dessa conversa com Betina Juglair, fundadora da primeira clínica de estética artística do mundo, que busca promover experiências a partir de obras de arte.


1. A gente sabe que experiência é uma palavra muito usada cotidianamente. Quando você decide proporcionar experiências, o que exatamente você quer dizer?

Quando falo em “experiência” nesse sentido da arte, penso num modo de percepção, ou mais precisamente, em modos distintos dela dos que estamos acostumados no cotidiano; percepção no sentido de uma abertura - tanto para percepções outras acerca do que já conhecemos, como para outros tipos de percepção, em que temos perspectivas novas e objetos outros. A experiência a que me refiro, e a que buscamos proporcionar aqui nesta clínica, é uma experiência de presença, de corpo, de sentidos, de memória afetiva - ver, sentir, olhar, cheirar, tocar o que não estamos acostumados, de um modo a que não estamos acostumados.

Trata-se de desconhecer aquilo que já conhecemos, para que possamos abrir a percepção a partir de outro ponto, e assim vermos outro aspecto desse objeto. É um outro tipo de experiência. Veja, os objetos artísticos têm o poder de causar-nos impacto, e os artistas têm esse ímpeto de justamente torcer o sentido das coisas. É dar espaço para esta torção o que buscamos fazer por aqui. Sobretudo porque essa torção a que me refiro não está em coisas grandiosas, mas justamente nas coisas pequenas, sem importância… Por isso a ideia desse novo espaço, a que nomeamos Pequeno Museu de Banalidades.


2. É fácil dizer – a história nos mostra isso fartamente – que o ser humano produz arte, mas por que você acha que a arte pode produzir a humanidade?

Se um objeto ou uma experiência nos impressiona, nos causa uma impressão tal que nos faz pensar sobre aquilo por algum tempo, ele desencadeia mudanças. Somos constantemente afetados e afetantes, mesmo que não saibamos plenamente. A arte, se não intenta ressoar de alguma forma, seja no espectador ou no próprio artista, é estéril. Ousaria dizer então que é imperativo da arte produzir; ao mesmo tempo, ser produto e produzir, como todas as coisas - com a diferença de que, talvez, o artista tenha alguma consciência do sentido que dá às suas criações e algum controle no modo como irá dispor sua obra, embora não possa prever exatamente o impacto naquele que a recebe.


3. Você disse em outra entrevista que temos uma habilidade quase inata para ler linguagens, uma vez que nascemos mergulhados nelas. Mas ler uma linguagem é diferente de ter uma experiência estética. Você poderia dizer onde estão estas diferenças?

A linguagem também pode provocar uma experiência estética, mas não enquanto mera intenção comunicativa. Para que haja uma experiência, como disse antes, é preciso que haja alguma torção de sentido - como ocorre com a poesia, por exemplo. Se falássemos só em poesia, não haveria comunicação possível, as pessoas não se entenderiam, causaria muita estranheza - mas é porque a linguagem existe que a poesia existe, para que a gente possa mudar o sentido das coisas, para que possamos sentir uma estranheza com a matéria-prima da língua, isso que a gente usa todo dia, isso que estou usando agora. É como se fosse o lado B, a parte inútil, que fica nas sombras.

Da mesma forma acontece nas linguagens visuais: se estamos rodeados por imagens, sobretudo imagens técnicas (aquelas que provém de um aparelho que media a relação entre o operador e a realidade, como fotografia e vídeo), a experiência estética pode surgir quando há certos ruídos, quando há essa torção também. Por exemplo, quando vemos imagens a que não estamos acostumados, quando uma imagem retrata algum tabu, ou algo que é cotidiano, mas de alguma perspectiva inesperada… Enfim, há a possibilidade de experiência estética quando a imagem exige uma recepção diferente, que a gente saia do modo automático a que normalmente vemos as coisas, para que então o olhar se renove.

4. Por que, afinal, você acredita que o ser humano sempre sentiu essa vontade de representar, seja uma realidade externa, seja o seu universo interior?

A vontade de representação provém um pouco dessa vontade de dar um sentido no mundo; sobretudo para dar sentido no modo como nós vemos e nos localizamos no mundo. Se o mundo está aí, eu também estou no mundo, também o vejo, o percebo, também vejo e percebo outros sujeitos. Talvez a representação não passe de um modo narcisístico de, ao mesmo tempo, reconhecer a imensidão de tudo o que não sou eu e de manifestar um desejo de se apoderar, de dizer de tudo o que não sou eu... E nesse processo, nessa manifestação nasce a linguagem - seja como imagem ou como escrita. E nesse sentido a arte, a representação artística anda muito próximo da intencionalidade das ciências - a diferença é que estas pressupõem e buscam a ordem e a racionalidade entre as coisas, enquanto a arte e os artistas abraçam o sensível e o caótico.

5. Se o artista vive na mesma realidade de todos, a imaginação é fruto de quê? O jogo que se joga entre o tangível (o mundo objetivo, concreto) e o intangível (o mundo subjetivo, a imaginação) parece ser decisivo, não? E como isso reverbera no lado de quem recebe arte?

Aquilo a que chamamos “realidade” é, sim, a mesma, mas não é igual a percepção de cada um sobre ela. Se proviemos de lugares distintos, com referências visuais e comunicativas distintas, com código genético, metabolismo e inclinações psicológicas distintas, com experiências de vida únicas, como dizer que todos vivem na mesma realidade? Todos estamos na mesma realidade, mas não a experienciamos da mesma forma. Assim que a imaginação atua também com base nesses referenciais a que estivemos em contato por toda nossa vida. A memória, por exemplo, embora tenha sim um aspecto compartilhado, comum, é em seus detalhes, nas especificidades dos eventos (um cheiro, um movimento, um rosto, um toque) extremamente subjetiva. Da mesma forma que quem recebe arte ativa esses referenciais e lê a obra a partir de seu lugar no mundo. Claro que também o modo como a obra está exposta influencia na sua leitura e recepção.

6. Aproveitando as recentes polêmicas sobre o papel do artista na sociedade contemporânea, é possível dizer que já na época pré-histórica podíamos chamar os artistas de vagabundos (risos), pois faziam coisas inúteis como cortar imensos blocos de pedras e apenas registrar imagens de animais. Por que você acha que existe essa obsessão humana por coisas sem sentido prático?

Não posso falar sobre os pré-históricos, rs… Mas o que posso dizer é que, hoje, isso de se debruçar sobre o inútil é cada vez mais raro e necessário. Porque quase tudo tem alguma utilidade, e quase todas as profissões se direcionam para produzir ou investigar utilidades. Mas quase não paramos e nos perguntamos o porquê de tudo isso, o porquê de mais coisas, de mais energia, de mais tecnologia… O artista é um desses que pára, que aprecia o ócio e as inutilidades, que perde tempo… “Perca tempo”, como diz o slogan aqui da clínica, uma frase que vi num ateliê que frequentava e que levei comigo, como sempre levamos coisas conosco.

Mas essa obsessão humana provém, talvez, da nossa origem “animalesca”: a vida para o trabalho e para o útil é uma invenção, uma ficção a que nos fiamos e moldamos nossas existências. É mais uma decisão coletiva do que um desejo individual, em nome disso que chamamos “sociedade”. Mas não há nada que diga que deve ser assim, que não há outro meio. Acho que essa tendência a olhar para o inútil provém dessa necessidade de desracionalizar nossas existências, de quebrar com as ordens que nos são impostas, com obrigações sem sentido. É como um suspiro de liberdade, o suspiro do ócio.

7. A tecnologia e a cultura do consumo tornaram possível uma tela de Van Gogh ser estampada numa camiseta, uma sinfonia ou um filme ir parar no celular. Você vê isso como uma coisa boa?

Vejo, antes de tudo, como algo inevitável. É o custo da destruição da autoridade das imagens, da horizontalidade delas na sua produção e posse. Quer gostemos quer não, é o legado das imagens técnicas, sobretudo da fotografia: criar esse espaço onde antes não havia imagem em circulação, porque elas só estavam nas paredes dos museus e nos vitrais das igrejas. É consequência da horizontalidade da produção e recepção das imagens. Portanto não vejo como algo a se valorar como positivo ou negativo, mas de entender como aconteceu esse processo, para onde ele aponta, o que podemos fazer em relação a isso, que impacto isso tem no nossos modos de nos comunicar, de fazer e consumir arte, e mesmo de fazer política.

Sabe, eu penso nesse tipo de coisa quando vejo as mais variadas coisas; a última foi quando vi um certo programa na TV, Nailed it!, que mostra confeiteiros amadores tentando repetir grandes obras da confeitaria. É um programa de sátira, sobretudo porque a culinária recentemente também se alçou a patamares artísticos… Enfim, um dos desafios era fazer um bolo do busto do presidente dos EUA, Donald Trump. É uma coisa ridícula, os bolos saem horríveis… E a própria ideia de fazer um bolo com a maior autoridade de um Estado seria inimaginável séculos atrás, ou, mesmo que fosse feita, não tem o sentido que tem hoje, esse caráter satírico, e tampouco haveria esse alcance amplo e instantâneo que a internet dá. E, todavia, embora hoje façamos e consumamos esse tipo de coisa, um sujeito como esse segue sendo presidente… Como se uma imagem como essas não afetasse seu cargo, sua governabilidade, fosse completamente banal (porque é).

De modo que meu ponto é: que autoridade esse tipo de imagem constitui e destitui? Entra outro tipo de poder em jogo? Estamos acostumados com esse tipo de crítica, é banal, mas houve uma total mudança de regime de imagem se comparamos a produção e recepção de imagens de hoje e do passado… Porque as imagens até o XIX tinham esse caráter de autoridade, de distinção de classe e poderio econômico, embora hoje esses pilares nas imagens se dissolveram… O que ocupa o lugar da autoridade, que tipo de poder as imagens emanam? Talvez justamente o poder da pulverização, da massificação. E então, a meu ver, não se trata apenas de termos Van Gogh em canecas, eu mesma tenho duas, mas sim de pensar acerca desse outro tipo de poder das imagens, e dessa outra ordem de consequência, não só estética mas também política.

8. Eu queria saber das suas preferências pessoais, ou seja, que tipo de obra te provoca? Você poderia me dar dois ou três exemplos, de acordo com as linguagens que mais te atraem?

Acho que já dei algumas pistas, mas diria que me tocam sobretudo as obras que me fazem deslocar, que me movem de algum jeito… Para se apreciar qualquer coisa basta estar diante dela. Estar presente. E, em verdade, não precisa ser uma obra de arte: o programa de confeitaria que mencionei me provoca, me faz pensar nesse tipo de coisa… Na pintura, gosto de usos de cores, gosto de ver as pinceladas bem marcadas, a expressividade dos artistas, como o Van Gogh que foi mencionado, mas também Matisse, Cecily Brown. Em gravura, ver a riqueza de detalhes, de linhas, de formas, de texturas, num meio difícil que é o metal, que se deve desbravar… Como as água-fortes de Rembrandt. Em poesia, gosto muito da fluidez, algo quase na oralidade, e sobretudo de inventividade, como Waly Salomão. Mas a questão é que tudo pode ser arte. Mario Levrero fez de seu diário uma obra, seu romance luminoso, e nela o que abundam são cotidianidades... Como a chatice de esperar na fila para renovar a carteira da identidade e a dificuldade de instalar um ar condicionado. Também escreve sobre experiências luminosas propriamente ditas… Mas o próprio artista perde sua autoridade enquanto tal, enquanto artista. Deve falar sobre seu processo, sobre onde está, como vive. Essa é a beleza das artes contemporâneas, sua abertura incondicional à vida, sua devoção à ela, e a consequente dissolução da autoridade incontestável da Arte (essa, assim, no singular e com letra maiúscula).

9. E como vai funcionar essa clínica de estética pioneira no mundo? Nos dê exemplos do que vamos encontrar.

Essa clínica terá a forma e conceito de um Pequeno Museu de Banalidades. Como já disse, acredito que a experiência estética se dá a partir da presença. E, sim, não dá para obrigar ninguém a estar presente… Mas a partir do momento que conferimos a autoridade de um museu a coisas banais e cotidianas, podemos induzir os espectadores que vivenciem as obras de outro jeito, do jeito que vivenciariam “obras de arte”. Mesmo que as obras sejam meramente… banalidades. Então a ideia seria dizer que é um museu, embora seja apenas uma coleção de objetos interessantes... Obras de arte ou não. Porque afinal o que constitui uma obra de arte? E não é isso o que os museus são, coleções de objetos? Ou são mausoléus, reféns da autoridade da Arte, essa que já morreu? Pois bem, meu pequeno “museu” quer manter a arte viva, e para isso ela precisa despir-se de grandes pretensões e passar a falar da vida… de cotidianidades.