APROXIMAÇÕES FORMAIS E POÉTICAS ENTRE UTUPË E IMAGEM A PARTIR DA FOTOGRAFIA DE CLAUDIA ANDUJAR DOS YANOMAMI

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Betina Juglair

10/25/202219 min read

Davi Kopenawa, xamã yanomami, apresenta a cosmologia de sua gente em “A queda do céu”, a partir da parceria com Bruce Albert, etnólogo francês e amigo de longa data. O livro em questão é resultado de sucessivos processos de tradução: das experiências xamânicas de Davi a palavras e desenhos para tentar dar conta de expressá-las, da linguagem yanomami das conversas com Albert para o francês, da forma de diálogo para o de texto em prosa.

A própria experiência xamânica é um processo de tradução: o xamã é pessoa múltipla, capaz de estar em contato tanto com o mundo espiritual dos xapiri e suas “imagens” (utupë) quanto com o mundo terreno, faz essa travessia entre os dois mundos. Mas isso não se dá de modo leviano: há todo um processo de iniciação, em que o aspirante a xamã deve passar por difíceis provações mentais e corporais. Passa-se por fome e sede prolongada, em que o corpo se enfraquece para que a yãkoana faça efeito, pó que age como uma “limpeza” da alma e do qual os xapiri se alimentam, para que assim possam fazer morada daquele corpo.

Kopenawa, no capítulo 5 de “A queda do céu”, descreve essa iniciação xamânica em detalhes, a preparação do corpo e da alma para que os espíritos desçam, se acomodem, e assim se sintam à vontade para se expressar, dançar e cantar, e então tornar a pessoa xamã. Os grandes xamãs acompanham e guiam esse processo difícil (no caso de Davi, esse papel coube a seu sogro), e neste ritual de iniciação os antigos continuamente dão grandes quantidades de yãkoana aos aspirantes, por dias a fio. É essa substância que os faz “virar outro”, que enfraquece o corpo e a consciência para que se entre em estado de fantasma - ou seja, através da yãkoana os xamãs sentem esse desprendimento de seu corpo, a disjunção radical entre sua pele e sua imagem. Enquanto o corpo permanece estirado no chão, imóvel, a imagem do xamã é como que sequestrada pelos espíritos xapiri, que a levam até os espelhos no peito do céu:

É verdade que os xapiri às vezes nos apavoram. Podem nos deixar como mortos, desabados no chão e reduzidos ao estado de fantasmas. Mas não se deve achar que nos maltratam à toa. Querem apenas enfraquecer nossa consciência, pois se ficássemos apenas vivos, como a gente comum, eles não poderiam endireitar nosso pensamento. Sem virar outro, mantendo-se vigoroso e preocupado com o que nos cerca, seria impossível ver as coisas como os espíritos os vêem.[...] É nossa imagem que os xapiri levam desse modo, para consertá-la. Primeiro a extraem de dentro de nosso corpo, para depositá-la em seus espelhos celestes. Enquanto isso nossa pele, muito enfraquecida, queda-se estendida na praça de nossa casa, na floresta.

A narrativa de Kopenawa, relatada em primeira pessoa a Albert e transcrita mantendo esse tom pessoal, íntimo e poético, faz transmitir a intensidade do relato: “Meu corpo de fato estava derrubado no chão, mas os xapiri seguravam minha imagem sobre seus espelhos, no mais alto do céu. Por isso, eu sentia vertigens e tinha tanto medo de cair! Estava suspenso acima de um enorme abismo, deitado em um amontoado de penugem branca”. Nota-se essa separação entre a existência corpórea e o flanar da imagem que se desprende e é guiada pelos xapiri - os espíritos, animais ancestrais, cujas imagens (utupë) descem até os xamãs, e assim eles cantam e dançam.

O xamã, então, experiencia essa disjunção radical entre corpo e alma, pele e imagem, porque em contato contínuo entre a dimensão dos xapiri e a terrena, onde está sua própria pele. Deve-se atentar, contudo, que o que os yanomami entendem por “imagem” é distinto daquilo que a tradição ocidental europeia entende - em verdade, pode-se dizer que têm uma concepção radicalmente oposta (ainda que o presente texto tenha a intenção de construir pontes entre ambas). A “imagem”, para nós brancos ocidentais, é comumente relacionada à ideia de simulacro, de representação, de superfície, remontando à tradição platônica de certa desconfiança da imagem, tida como mera cópia; o artista seria um mero imitador - e ainda um imitador da aparência, não da realidade.

Já Kopenawa, quando trata da utupë, escolhe como tradução justamente o termo “imagem”, como um análogo (a escolha de palavras é mesmo dele, não de Albert), embora esta utilização levante algumas questões porque há um deslocamento radical de sentido. Veja-se pelo importante trecho seguinte, nas palavras de Kopenawa:

Todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. São essas imagens que os xamãs chamam e fazem descer. São elas que, ao se tornarem xapiri, executam suas danças de apresentação para eles. São elas o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais que caçamos. São essas imagens os animais de caça de verdade, não os animais que comemos! São como fotografias destes. Mas só os xamãs podem vê-las. A gente comum não consegue.

É importante, também, nos atentarmos à nota escrita por Bruce Albert quando da menção à fotografia justamente no trecho referenciado acima. Escreve o etnólogo, na nota de número 14 do capítulo 4, junto ao termo “fotografias”: “As imagens fotográficas são designadas pelo termo utupë, que significa ‘imagem corpórea, essência vital, forma mítica primordial’, e também ‘reflexo, sombra, eco, miniatura, réplica, reprodução, desenho’”.

Dos trechos, é possível elencar uma série de questões, a primeira delas, como já referido, a amplitude da utupë/“imagem” na cosmologia yanomami. Nota-se que “imagem” aqui é empregada de modo bastante distinto em relação aos brancos, poder-se-ia dizer até mesmo contraditório - afinal, longe de ser mero simulacro, longe de ser representação, essas imagens-utupë são “o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais” como diz Kopenawa - a ênfase no verbo ser se dá porque não é que a imagem “é como se fosse” algo, a imagem não representa nada - pelo contrário, a imagem “é”.

Como já dito, quem faz a aproximação entre os termos é o próprio Kopenawa, e não devemos presumir que por ingenuidade, mas porque ele deve observar, em algum nível, certa aproximação entre o que nós entendemos pelo termo “imagem” e o que eles entendem por utupë, apesar de tudo o que separa os termos. As definições apontadas por Albert quando Kopenawa refere-se à imagem fotográfica como igualmente contemplada pelo termo utupë também explicitam essa distensão do termo: ao mesmo tempo que é “essência vital, forma mítica primordial” é também “réplica, reprodução”. Isso nos informa tanto a respeito da fotografia quando de utupë.

Assim, vê-se que há esse espaço entre “imagem” e utupë, não são perfeitos equivalentes, embora haja alguma correlação; e, diante da insuficiência das palavras para dar conta do conceito, julga-se importante justamente pensar em outros recursos para criar novos caminhos de aproximação. Assim, para além da palavra, pensa-se sobretudo na fotografia, e especificamente o trabalho fotográfico de Claudia Andujar com os yanomami. Intenta-se, portanto, pensar a fotografia (ou, um certo tipo de imagem fotográfica) em relação à imagem e à utupë, como se estando no interstício entre ambos.

Para tanto, primeiro se irá debruçar um pouco mais detalhadamente sobre a presença da utupë no contexto xamânico, a partir sobretudo de Conversações em Watoriki, de autoria de Stella Senra. Trata-se de um artigo escrito a partir de diálogos entre Bruce Albert, David Lapoujade e Laymert Garcia dos Santos, que, após terem presenciado rituais xamânicos em Watoriki, uma das moradas dos yanomami, conversam para tentar dar conta daquilo do que que estiveram diante, e então se debruçam sobretudo sobre utupë e sua relação com imagem.

Assim, nas Conversações, Albert aponta que a imagem para os yanomami não tem uma forma plástica, não depende de um suporte: “todas as imagens dos primeiros tempos são constantemente ‘baixadas’ pelos xamãs para curar, para controlar a ecologia, e assim por diante.” Ou seja, o “suporte” para as utupë são justamente os próprios xamãs, seus corpos que se movimentam, cantam, dançam os xapiri; não há outro suporte material, outro objeto maleável: há apenas o próprio homem, que faz do seu corpo casa de espíritos. E assim, Albert continua a falar dessa imagem yanomami:

a experiência mais precisa e essencial do xamanismo é esse momento em que o xamã faz coincidir essa imagem com o seu corpo. Segundo o antropólogo, nesse processo nunca há representação, nunca há permanência e nem identidade, qualquer que seja ela. Trata–se de uma ontologia continuamente fluida, são imagens incessantes passando, imagens essenciais das coisas, dos seres, tal como eram no momento da sua criação. Para Bruce Albert, o interesse que os Yanomami despertam em relação aos outros povos da Amazônia é essa espécie de grau zero do suporte, da representação; uma espécie de radicalidade interna como se o corpo do xamã fosse o único lugar onde essas imagens mentais se materializassem.

A imagem é passagem, mas ao mesmo tempo carrega algo de ontológico, porque são os xapiri, entidades ancestrais, que ali se manifestam através dos xamãs: tradução entre instâncias, o corpo do xamã é onde convergem tempos, dimensões e espaços distintos, é onde os xapiri ao mesmo tempo são e aparecem - ou seja, como se imagem e realidade convergissem, são virtualidade infinita. Porque empresta a si mesmo aos xapiri, o xamã é, além de si próprio, também outros: sua pele, seu corpo, é suporte e também incessante movimento. O aspecto ontológico, portanto, não é do tipo fixo e imutável, mas um tipo de ontologia tradicionalmente não-ocidental: se é de sua natureza a fluidez e a mudança constante, o ser das utupë são as próprias imagens e também os entes das quais emanam (uma identidade fluida).

Há um fluxo contínuo, em que não há permanência ou fixidez: as imagens originárias (utupë) perpassam pelo xamã que empresta seu corpo para que se manifestem. Por ser movimento contínuo, é sempre imagem atualizada a cada instante, e dura enquanto durar essa passagem, essa metamorfose; assim que, ao mesmo tempo, são e aparecem. O referente da imagem-utupë é a própria imagem-utupë: coincidem.

Assim que a imagem, aqui, não é representação, não refere-se a algo externo a ela: a imagem é. Como escreve Stella Senra nestas Conversações: “é a multiplicidade total do ser das coisas que se manifesta no devir imagem dos xamãs, um devir cujo suporte é, e só pode ser, o corpo. Bruce Albert destaca que o xamã é uma virtualidade infinita, tudo pode se tornar uma imagem e passar pelo seu corpo como intensidade”. Assim, utupë se manifesta nesse devir, essa incessante passagem de seres que cantam e dançam através do xamã; se é imagem, é volátil, fluida, mutável: é metamorfose. Ao mesmo tempo, se é utupë, é essência vital, forma mítica primordial. Assim que a imagem-utupë yanomami é singular e plural, identidade não-idêntica.

Há uma espécie de dessubjetivação, mas não no sentido da epistemologia ocidental europeia tradicional, que intenta livrar-se de todo “excesso” subjetivo para se chegar ao puramente objetivo, aquilo que pode ser apreendido indistintamente por qualquer um para que, assim, se possa falar em produção de conhecimento. No sentido yanomami, é possível falar em dessubjetivação nos rituais xamânicos porque esse “dessubjetivar” implica borrar as fronteiras do corpo, fazê-lo confundir com a floresta e com os seres que ali habitam (independente da dimensão, se terrena ou espiritual). O xamanismo yanomami implica se deixar ocupar por outros: o xamã empresta o corpo para os espíritos, que então se comunicam, dançam, através desse corpo de que fazem casa. Ou seja, não é que tudo é objeto, mas sim que tudo é sujeito, tudo é possível de ser imagem. Ainda em Senra, destaca-se o seguinte:

A passagem do xamã de um a outro espírito se dá fora da representação, como já dissemos. Bruce Albert a define como pura experiência afetiva. Para alcançar esse modo de experiência — lembra o antropólogo — a iniciação xamanística consiste, justamente, em quebrar as condições básicas da subjetividade. Trata–se de um rompimento da imagem corporal, de um desmembramento que permite sair da representação. Só depois de concluída essa prova, o quadro de percepção habitual é desconstruído e o xamã pode chegar a sua experiência: fazer descer esse virtual infinito do ser das coisas, no seu corpo, e fazer os outros compreenderem, perceberem isso através do estado afetivo, da experiência corporal, em dado momento.

Assim, tem-se novamente que a imagem xamânica não é representativa, embora possa-se dizer que toma a forma corpórea na medida em que ela é expressa através do corpo do xamã, que recebe este “virtual infinito das coisas”, ou ainda, essas “formas místicas primordiais”, e permite que se expressem através de seu corpo, tomando forma justamente enquanto se expressam. O elemento temporal é importante: por ser movimento, por ter o corpo como suporte fluido, há essa efemeridade da imagem xamânica. Um outro trecho de Senra que refere-se a Albert é esclarecedor neste sentido: “[as imagens xamânicas] SÃO o corpo imediatamente. Mais propriamente, elas são coisa e passagem no corpo; elas se tornam e são perceptíveis ao exterior unicamente a partir do momento em que tomam corpo literalmente, ou seja, não há outro estado.” Assim, entrevê-se mais claramente o que seria essa ausência de suporte estável, de fixidez; são metamorfose, uma coisa e outra ao mesmo tempo, em movimento.

Um outro aspecto a ser considerado acerca das imagens xamânicas, e em um sentido que se aproxima com a fotografia, é quando Kopenawa afirma que os xapiri, embora carreguem nome único para se referirem a um ser, não se manifestam enquanto um espírito singular, mas uma “multidão de imagens semelhantes”. Continua Kopenawa, ao dizer que essas imagens dos xapiri:

São como as imagens dos espelhos que vi em um dos hotéis que dormi na cidade. Eu estava sozinho diante deles mas, ao mesmo tempo, tinha muitas imagens idênticas espalhadas neles. Assim, há um só nome para a imagem da anta xama enquanto xapiri, mas existem muitíssimos espíritos anta que chamamos xamari pë. É assim com todos os xapiri. Há quem pense que cada um é único, mas suas imagens sempre são muito numerosas. Apenas seus nomes não o são. São como eu, de pé diante dos espelhos do hotel. Parecem únicos, mas suas imagens se justapõem ao longe sem fim.

Em nota puxada a partir do termo xamari pë no trecho acima, escreve Albert que “assim, sempre que um xamã evoca um xapiri no singular, refere-se implicitamente à multiplicidade infinita de suas imagens utupë”. Assim que, desta descrição de Kopenawa em que ele aproxima as imagens-utupë com a justaposição sem fim da sua própria imagem no espelho do hotel, que se pode se aproximar, enfim, da fotografia.

Uma questão a ser melhor detalhada quando se trata da fotografia é que ainda tendemos, de um modo geral, a pensar a fotografia como documento, uma prova do real, embora seu estatuto tenha mudado substancialmente desde o advento desta técnica. Philippe Dubois, no ensaio “Da verossimilhança ao índice”, presente em “O ato fotográfico”, descreve três momentos do estatuto da imagem fotográfica, que seriam, em linhas gerais:

1) a fotografia como espelho do real (o discurso da mimese): aqui, a fotografia aparece como reprodução mimética da realidade, como verossimilhança; a foto como espelho do mundo.

2) a fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução): há uma denúncia dessa primeira pretensão de realidade, porque cada imagem pressupõe uma série de elementos que distendem o que é empírico, interpretam e orientam de modo técnico, arbitrário, cultural, ideológico e perceptual; a fotografia entendida como um código.

3) a fotografia como traço de um real (o discurso do índice e da referência): aqui, há um retorno ao referente, mas não de modo ingênuo a pensar em termos de mimese, de um pretenso realismo; a realidade primordial da imagem fotográfica intenta, no mínimo, afirmar a existência do referente, aponta ao momento específico de sua criação; a fotografia como índice.

Dubois descreve esses momentos apontando praticamente uma linearidade cronológica entre esses discursos: o discurso que conviveu com o advento da fotografia teria sido o da mimese, ao que se seguiu a crítica à foto como cópia e como ideologia (uma vez que nela se inscrevem aspectos para além de uma mecanicidade técnica e implicam decisões ideológicas e de outras ordens); e, por fim, um retorno ao referente, mas de modo a levar em conta as críticas endereçadas anteriormente, já que as fotografias, apesar de serem enviesadas, têm uma natureza indiciária, ainda assim apontam para alguma coisa, atestam a existência pontual daquele estado de coisas - como na passagem de Roland Barthes, adepto desta abordagem, que aponta que o “nome do noema da fotografia será então: ‘isso-foi’”.

Dubois pensa a fotografia a partir desse último momento, e concebe a existência do passado na imagem fotográfica a partir de rastros, não de uma identificação total. O que definiria o caráter epistemológico da fotografia é sua conexão física e remota ao referente, sob forma de índice. A fotografia como índice põe em evidência o momento da produção da imagem, o exato instante de captura do real e sua transformação em imagem (o que não deixa de levar em conta também os processos prévio e posterior ao da captação da imagem, que orientam a produção e recepção da fotografia).

No entanto, o que se quer evidenciar aqui é um outro tipo de fotografia em que, em que pese ainda apontando a existência daquele real passado, aponte também para um virtual inalcançável. Claudia Andujar, quando fotografou os yanomami, conseguiu um resultado nesse sentido. Sua fotografia ao mesmo tempo em que admite sua existência material enquanto imagem representativa da ordem indicial, também instaura uma relação de natureza ficcional com o referente. Isso se dá através do conteúdo e forma: no conteúdo, Andujar traz uma poética do olhar que abre uma brecha e instaura uma instância de ficção; na forma, há reafirmação material e mecânica da fotografia, quando características físicas da própria película são evidenciadas. Assim, a produção de Andujar permite pensar uma fotografia não representativa, cujo referente é ao mesmo tempo o real físico (os yanomami e também a própria película) e o virtual (a instância da imagem xamânica, utupë). Ou seja, ao mesmo tempo que admite sua natureza mecânica e indiciária, também se dissocia de qualquer pretensão figurativa ao apontar a limitação da própria técnica.

Bright living room with modern inventory
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Fotografia de Claudia Andujar do ritual xamânico yanomami. Fonte:[https://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/livros/2014-08-01/na-flip-fotografa-claudia-andujar-exibe-trabalho-sobre-os-yanomami.html]

Claudia Andujar teve uma produção profícua junto aos yanomami, e uma miríade de imagens poderiam ser aqui referenciadas por seu apelo estético e político transcender uma relação de verossimilhança simples. A foto escolhida traz o aspecto poético que se busca: há a escolha da película que evidencia tons frios e transições suaves, há a dupla exposição que causa o efeito de sobreposição de sensações e instâncias (o físico e o espiritual), há a própria imagem do yanomami em estado de transe que transcende sua pele e alcança as costas do céu. Andujar retratou os yanomami por muito tempo e levou anos de imersão em sua cultura até que se desprendesse de uma fotografia representativa para alcançar o efeito de foto evocativa. Nesse sentido, é interessante a colocação no artigo de Senra acerca da recepção das fotografias de Andujar por Davi Kopenawa:

Laymert Garcia sugere um entendimento mais amplo da questão quando considera que essa imagem [utupë] contém tanto o atual quanto o virtual, tomando como ponto de partida sua observação pessoal ao ver o xamã Davi Kopenawa diante das fotografias de Claudia Andujar. Com efeito, como se estivesse numa sessão de xamanismo, Davi Yanomami identifica espíritos nas imagens, diz o que está acontecendo ali, o que cada um está fazendo... Para ele, a imagem não é fixa, observa Laymert, ela é como que “apanhada” numa espécie de corrente que não para de passar.

Ora, o efeito mencionado aqui que se conecta à sensibilidade de Andujar exprime qualquer coisa para além da própria superfície da fotografia, que escapa ao que pode ser descrito em nível semiológico e repousa num âmbito sensorial e mesmo espiritual. É a potência estética e poética de suas imagens que abrem para uma percepção outra, para uma instância outra de leitura. Se Kopenawa (um yanomami que também domina a língua e a cultura dos brancos) tem esta recepção das imagens fotográficas de Andujar, é que se entende que é, sim, possível aproximar utupë de imagem - mas desde que as imagens carreguem algo para além da superfície, abram a percepção não para o aspecto estático, mas móvel, pulsante, qualquer coisa que esteja de passagem.

Outro recurso empregado por Andujar num livro editado em 1978, junto a George Love, seu marido na época, também aponta para os limites do realismo na fotografia. Pensa-se aqui no “Amazônia”, fotolivro que, através de recursos técnicos, consegue captar a pluralidade de mundos dos yanomami.

O livro inicialmente traz imagens aéreas da Amazônia, em que as paisagens por vezes são apenas sugeridas e trazem texturas, jogos de luzes e cores; depois passa a adentrar na floresta e assim remonta-a em seus sussurros, um olhar cúmplice; enfim apresenta os yanomami, sua relação com a floresta, entre eles e os “espíritos”, mostrando imagens do cotidiano e também de seus rituais xamânicos numa explosão de efeitos cromáticos.

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Fotogramas queimados no fotolivro “Amazonia”, de Claudia Andujar e George Love.

Fonte: [https://revistazum.com.br/livros/amazonia-andujar-love/]

Embora mais coisas possam ser ditas sobre a estrutura do livro em questão, um elemento específico deve ser sublinhado: a repetida presença de fotogramas queimados no decorrer do livro. Num artigo para a revista ZUM, denominado “O fotolivro ‘Amazônia’ e o enigma da ponta de filme”, Ângelo Manjabosco escreve o seguinte:

A narrativa vai do macro ao micro, começa com as fotografias aéreas até pousar em pedaços de cenários e corpos dos índios. Do meio para o fim, é como se imagem técnica, para dar conta do assunto, se desgarrasse de tudo aquilo que pode servir como convenção da representação. Os tempos ficam cada vez mais lentos. A conexão com a realidade não serve e desmancha.

Prova disso é a ponta do filme, que teima em reaparecer a cada conjunto de fotos como se fosse um refrão. Quando entra aquilo que sempre sobrou é porque a imagem fotográfica já não basta. Ao mesmo tempo, a ponta do filme é uma imagem fotográfica, talvez a mais fotográfica de todas. No limite, a borda do filme é também a borda da própria fotografia. Sem contar que, no Brasil dos anos 70, colocar uma ponta de filme em um livro pode ter sido, ainda, como colocar uma receita de bolo no jornal: ocupava o lugar mais nobre, o espaço deixado por aquilo que era tão importante que não pode ser escrito.

Assim, o recurso empregado por Andujar e Love tem um caráter estético e político que vai de encontro frontal com a convenção da fotografia como representação. Uma borda de filme queimado não traz, em si, nenhum conteúdo figurativo; é uma imagem abstrata, virtual, mas ainda assim corpórea, porque a partir do próprio filme, porque materializada na “pele de imagem” que é o livro. É uma imagem cujo referente é o próprio suporte, portanto muito próximo do que ocorre com utupë. Se ela aponta para algo, é para a própria insuficiência da linguagem fotográfica, é para a própria técnica.

É como se Andujar, ante a riqueza da experiência do ritual xamânico, se desse conta da insuficiência de seu instrumento técnico e mostrasse a própria transcendência da experiência que está diante de si. A imagem queimada pela câmera é uma imagem-limite: ao mesmo tempo reprodutível (porque fotográfica) é também vazia de representação, cujo referente é o próprio filme fotoquímico. É como uma imagem técnica nua, despida das pretensões ocidentais europeias de dar conta de dizer o mundo, retratá-lo, ordená-lo, capturá-lo; é como uma tentativa de manter viva a utupë, de encarnar um instante do ancestral processo de metamorfose, um respeito ao ritual.

Então, pode-se dizer que essas imagens de Andujar (tanto através dos fotogramas queimados quanto das imagens poéticas) conseguem extrapolar a pretensão de representação que se convencionou esperar das imagens fotográficas no Ocidente. A partir dessa outra experiência de imagens pode-se tentar uma aproximação diferente com a experiência xamânica, e compreender melhor a analogia feita por Kopenawa, bem como repensar outras possibilidades de sentidos para o que entendemos por imagem. Talvez seja no coração da própria insuficiência dos suportes (tanto da linguagem quanto da imagem) é que se possa desenhar uma aproximação mais palpável e coerente com utupë. Quando se admite a insuficiência do meio - como é o caso do fotograma queimado, que zomba da própria técnica - é possível observar com mais clareza os interstícios entre as diferentes experiências de imagens, a yanomami e a ocidental europeia branca.

Ainda sobre as potencialidades estéticas e políticas na exposição do filme fotográfico queimado, refere-se mais uma vez a Manjabosco: mais que um recurso estético, a ponta do filme

é tão fundamental para contar a história que ocupa o lugar do que não pode ser fotografado. Algo que desapareceu do discurso jornalístico e reapareceu no discurso artístico. Nesse sentido, a ponta do filme é o equivalente fotográfico da ideia fora do lugar – ou do lugar fora da ideia. É aquilo que não pode ser dito.

Imagem técnica nua, despida de sua capacidade representativa, ainda que se conserve seu caráter indiciário: o fotograma queimado aponta, para além daquilo que não pode ser dito (como escreve Manjabosco), como também para aquilo que não pode ser visto, apenas intuído, sentido; a sensação que fica sendo a de que, se apenas uma parte é vista, algo também é perdido.

As paisagens e retratos de Andujar são físicos e também sensoriais, já que instigam uma leitura para além da superfície da película/tela. Apontam para uma realidade que, se ela não alcança por não ser xamã, ainda assim é capaz de intuir e de mostrar algo sobre. Também as imagens xamânicas transitam entre o real e o virtual, atravessam instâncias e formas de vida. Utupë, assim, é corpo imagético plural e virtualidade incessante, enquanto a imagem fotográfica é corpo vivo que aponta para vários sentidos e atravessa instância.

BIBLIOGRAFIA

ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015

BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução: Marina Appenzeller. 14ª ed. Campinas: Papirus, 2012

MANJABOSCO, Ângelo. “O fotolivro “Amazônia” e o enigma da ponta de filme”. in: Revista ZUM. Disponível em: https://revistazum.com.br/livros/amazonia-andujar-love/ Acessado em 05 dez 2018.

PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997

SENRA, Stella. Conversações em Watoriki. in: Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP. n 13, 2011,.p. 55-77

Tenho fome de me tornar em tudo que não sou [...]

tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra douto doutra em tudo em tudo que não sou

Waly Salomão [Na esfera de produção de si mesmo]